Por Cláudia Pereira //
Tive uma infância relativamente tranquila. Digamos que tive de tudo um pouco.
Uma mãe que lutou para nos sustentar.
Um pai ausente em todas as datas possíveis.
Uma avó amorosa e super protetora.
Tias modernas que tinham bom gosto musical e literário.
Um primo que foi durante um tempo meu irmão mais velho.
Irmãos encapetados e unidos em todas as brincadeiras.
Enfim, não posso me queixar de ter sido infeliz.
Se fui rebelde foi por pura insistência minha.
Motivos mesmo eu nunca tive.
Minha família não era excessivamente conservadora. Pelo contrário, eles nos permitiram fazer nossas próprias escolhas.
Sou a mais velha de três irmãos.
Carlos é o caçula mimado.
Charles o filho do meio problemático.
E eu, a rebelde sem causa e muito geniosa.
Vendo assim...sinto muita pena de minha mãe.
A coitada sofreu muito para controlar esses três diabinhos em forma de gente.
Agora entendo o motivo dela ficar tantas horas em pose contemplativa.
Devia pensar: “meu Deus...ninguém me falou que seria tão difícil..”.
Minha mãe era uma taurina típica. Teimosa, com enormes dificuldades para lidar com idéias contrárias às suas. Quando não concordava com algo se recolhia ao silêncio. Era quase impossível fazê-la falar sobre seus próprios sentimentos.
Os belos olhos verdes eram tão enigmáticos . Sempre fui apaixonada por eles. Eu enxergava naquela amplidão algo indescritível.
Solidão. Era isso que eu via neles. Minha mãe nunca demonstrou ser uma mulher plenamente realizada. Sempre dizia não ter vocação materna.
Pois acho que estava errada. Ela nutria pelos seus filhos uma proteção além dos limites. Fez o que pôde para ajudar meus irmãos. Foi mãe e avó.
No fundo, eu sempre me ressenti disso. Sempre me senti meio que deixada de lado.
Hoje eu percebo que ela sabia que eu era capaz de sobreviver sozinha. Nunca precisei da acolhida maternal como eles. Desde pequena nutri uma independência além dos limites.
Talvez seja por isso que nunca tenha questionado as minhas escolhas. Ela perguntava, eu respondia...e pronto.
Nunca fomos tão íntimas assim. Fui uma adolescente desprezível. Calada, neurótica, irritante. Eu não tinha amigos. Não tinha namorados. Eu me divertia ouvindo The Smiths, lendo meus livros e escrevendo meus poemas.
E assim eu me trancava no quarto. Eu não tinha uma vida abertamente juvenil. Fui realmente uma garota muito arredia.
Sempre senti que ela não entendia o meu comportamento. Não havia diálogo. Éramos estranhas que dividiam uma casa.
Me tornei uma adulta mais distante ainda. Fui criando novos círculos de amigos e me distanciei completamente da minha família.
Saí de casa e me tornei independente. Nos víamos muito pouco. E quando isso acontecia era uma coisa sem muita emoção.
Isso tudo mudou quando foi diagnosticado o câncer de minha mãe. Lembro de ter chorado muito e de ter me sentido uma péssima filha.
Fui a última a saber.
Não poderia ter sido diferente, eu levava uma vida com outras ambições, com outros interesses.
A doença me fez acordar para a realidade. Eu precisava desesperadamente me aproximar do que eu nunca havia valorizado.
Dói muito dizer isso, mas o câncer nos tornou mãe e filha.
Criamos laços nunca antes feitos.
De repente, eu senti que havia perdido grandes momentos devido ao meu egoísmo.
Por que foi mesmo que me afastei tanto?
Pra ter liberdade, pra ter uma vida liberta de dogmas...de obrigações.
Para onde isso me levou?
Experimentei drogas. Bebi além da conta. Andei com pessoas não tão boas assim. Me doei a quem não me amava. E o pior, machuquei quem não merecia.
Sei que minha mãe sofreu calada. Eu assumo a culpa. Foi culpa minha mesmo. Eu poderia ter sido mais presente e mais humana.
Não fui.
Lembro das ausências em datas comemorativas. Do dia em que esqueci o dia do aniversário dela. Dos natais em que eu telefonava somente para selar a minha obrigação como filha.
Eu me envergonho muito disso. Queria poder mudar, queria ter tido tempo para fazer diferente.
Tentei de todas as formas me reaproximar. Fui carinhosa. Companheira. Tentei encurtar a longa distância sendo mais presente.
Relembro agora ela me olhando deitada na cama....pegando nas minhas mãos...beijando os dedos...com aqueles olhos marejados de lágrimas.
E eu lá tentando esconder a minha emoção.
Choro enquanto escrevo esse relato. Sinto uma dor enorme por tê-la perdido.
Jamais me esquecerei do perfume dela. Daquele cabelo louro sedoso. Da pele branquinha feito neve. Das unhas bem tratadas. A voz baixa e bonita. Aquela risada única de felicidade.
Lembro dela todos os dias. E todos os dias eu choro. A perda foi uma lição de vida.
Aprendi a valorizar as pessoas de outra forma. Aprendi que não é cafona demonstrar sentimentos. Aprendi a reverenciar os mais velhos. Aprendi a não desistir de ser feliz. Aprendi que meus irmãos me amam. Aprendi que eu preciso da minha família.
Com eles eu sou a Cláudia, aquela menina chorona e enjoada, que chorava sempre que perdia em qualquer tipo de jogo.
Com eles eu sou emotiva. Sou eu mesma. Sem disfarces e máscaras. Sendo objetiva ou infantil. Conciliadora. Encrenqueira. Tia e irmã.
Nada me trará a minha mãe de volta. Nunca mais poderei deitar naquele colo e derramar minhas lágrimas.
É difícil superar a perda da dor. Mais duro ainda é saber que eu poderia ter feito tudo diferente.
Você que me lê agora, não cometa os mesmos erros.
Não faça da sua independência financeira desculpa para não sentir nada.
É possível ser livre e ter sentimentos.
Eu não tinha ou não sabia como lidar com eles.
Escolhi não ser mãe. No fundo deve ter sido medo mesmo. Pavor de ter uma filha como a que fui quando jovem.
Não sei ainda se essa é a resposta certa.
O que sei é que certas ausências nunca são superadas.
Dói. A gente chora. Sofre. Se martiriza. Chora de novo. Passa....volta a lembrança. Vemos um filme passar na nossa frente...e pronto...pedimos perdão pelas nossas falhas.
Eu sei que ela me perdoou. Sei que conseguimos desfazer os maus entendidos a tempo.
Mas não posso deixar de pensar que errei muito.
Tento buscar dentro de mim o perdão. O mais duro é se perdoar. É aprender com os erros e não cometê-los novamente.
Viver não tem fórmula exata.
O que sei é que o caminho é árduo.
Nele, está embutido grandes perdas e algumas alegrias.
Saber lidar com todas elas é o verdadeiro milagre da superação.
E não fazer deles motivos para errar de novo é a minha meta de vida.
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